20080830

As Quedas de Ícaro - análise de quatro pinturas do tema sob contexto Renascentista e Barroco, parte III

Barroco Flamengo/Italiano.

A QUEDA DE ÍCARO - Peter Paul Rubens, 1636-8.
Óleo sobre tela. Museu de Arte Antiga, Bruxelas.






Rubens retrata Ícaro e Dédalo lado a lado. O primeiro cai, em desespero, e podemos ver seu rosto de agonia ao tentar olhar uma última vez para o pai, pedindo auxílio. Este, sem nada que pudesse fazer, continua a voar e encara o filho com um ar grave, mas passivo, como se tivesse aceitado o seu destino e dissesse a ele com os olhos que isto era suposto acontecer. Não esqueçamos que Dédalo era um assassino, e não foi Ícaro o primeiro homem que ele levou às alturas para depois fazê-los despencar. Há uma discrepância com o que dizem os textos clássicos, que deixam claro estar Dédalo muito longe de Ícaro até para ouvir os gritos, neste momento. A impressão que Rubens passa é que Ícaro na verdade estava logo acima de seu pai, mas ainda assim muito afastado, e o momento que ele escolheu para eternizar na tela foi o nanossegundo da queda em que pai e filho se cruzam pela última vez. Isto, de fato, pode explicar muito não só sobre a arrogância de Ícaro, mas a relação entre uma pessoa mais experiente, automaticamente mais contida em suas ações por não querer arriscar tudo o que tem construído em sua vida, e a empolgação curiosa da juventude; de certo modo, Dédalo inveja a pureza inocente do filho assim como invejou as habilidades de artesão de seu pupilo, e quando o vê caindo, não se move para ajudá-lo porque acha que, se foram as ações dele que o levaram à queda, então nada mais justo que se afogue no mar. Isto é muito característico da mentalidade barroca, que coloca uma conotação negativa em Ícaro, agora encarnando o espírito dos hereges fazendo seu caminho para a perdição ao não ouvir os ensinamentos do Catolicismo. E Dédalo, por mais que represente a voz da consciência religiosa, ainda assim não é livre das impurezas humanas e a falta de compaixão mostrada nos diz que, pelo menos em algum sentido, ele está aliviado pelo fato de Ícaro receber um castigo por suas ações descomedidas - o que valoriza ainda mais a importância de se manter num caminho digno.
A posição de Ícaro também não é nada lisonjeira, o corpo retorcido e de cabeça para baixo, um outro simbolismo. Ícaro está sendo tragado de volta por forças inevitáveis, e a partir desse momento as coisas se invertem: dantes, rumava de peito aberto e cabeça levantada aos céus, e agora, cai desengonçado, de ponta-cabeça, para encontrar seu destino terrível. O tecido rosa coral é a única cor vívida do quadro; o que é intrigante, pois o coral no Barroco é a representação material do imaginário, como se o fracasso de Ícaro se devesse ao fato de estar ele vestido de fantasias. A cena inteira é banhada de amarelo, lembrando a causa da queda. (Note-se a diferença de expressão e elasticidade estilística que encontramos entre a arte do Norte e a italiana, a seguir.) Interessante é também questionar o momento exato em que o sol deixa de ser agradável para tornar-se cruel, e perceber que há uma linha indefinível entre as ações consideradas corretas e aquelas que podem levar à perdição.


A QUEDA DE ÍCARO – Carlo Saraceni, 1600.
Óleo sobre tela. Museo e Gallerie Nazionali di Capodimonte, Nápoles.






A intermediária das três telas da série (sendo as outras duas O Vôo de Ícaro e O Enterro de Ícaro), Saraceni monta uma composição que possui elementos em comum tanto com a visão ampla de Bruegel e Bol, quanto a relação pai-filho que coloca Rubens. Podemos ver a baía, mas Creta já muito distante; o pescador, no canto direito, com um homem montado a cavalo de manto rosa que aponta para os dois homens alados; Ícaro, que cai de costas com os braços abertos e uma asa danificada, as penas a soltarem-se; Dédalo, que olha para trás e se dá conta de que o filho cai e não há nada que se possa fazer; e, finalmente, o sol, imponente, que pode resplandecer forte no céu azul e límpido. Duas outras figuras humanas, mais distantes, também parecem olhar para a cena. Porém, quem possui o manto rosa coral agora é Dédalo – o de Ícaro presumidamente já se soltou durante a queda, mostrando que agora, despido de sua parte fantástica, não há outro destino senão encarar a dura realidade da morte. Os espectadores não parecem estar muito chocados com o que vêem, apesar de comentarem, simplesmente parece que, se o problema não é com eles, então não há motivo para comoção. Ao contrário do padrão barroco, a luz não é exageradamente dramática nem indireta, mas se faz incomodamente presente no quadro todo, retomando a idéia de que não é só a escuridão que é alienante.
Ícaro, ao cair de costas, sabe que está fadado, mas ainda assim é obrigado a contemplar o céu e o sol que tentou conquistar, enquanto avança sem saber o que o espera embaixo. Saraceni pintou só uma das asas destruída, o que pode significar que, mesmo com algumas virtudes intactas, um lado sadio, não é só o que basta para seguir em frente, e muito menos alçar vôos mais altos – se uma parte é podre, ela vai sobrepujar as boas qualidades, remetendo à integridade compositiva do Barroco. Dédalo, mesmo tendo voado mais baixo, é representado à frente de Ícaro, de onde tudo o que lhe resta fazer é olhar para trás: como se também deixasse afogar sua própria parte fraca (afinal de contas, Ícaro, sendo seu filho, é uma extensão dele mesmo), já tendo ultrapassado a fase de irresponsabilidade. As asas frágeis de Ícaro podem também representar uma falsa ascensão aos céus, isto é, por meios que não aqueles pregados pelo Catolicismo, e que será devidamente punido. Quanto mais alto o vôo, mais dura é a queda.

1 xxx:

Anônimo disse...

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