20080829

As Quedas de Ícaro - análise de quatro pinturas do tema sob contexto Renascentista e Barroco, parte I

Introdução - da Idade Média ao Barroco.

Como toda passagem histórica, é problemático estabelecer o ponto exato em que termina a Idade Média e surge o Renascimento; a transição não é abrupta e universal, mas sim rizomática, fragmentada e totalmente subordinada ao momentum político, econômico e social de uma determinada região da Europa. É possível, no entanto, identificar aspectos precursores que, digeridos e recombinados, constituem o que chamamos Renascimento nas artes visuais; aspectos estes que compreendem novas descobertas científicas, mudanças estruturais nas sociedades, renovação da espiritualidade e das demandas culturais. Pode-se dizer que o período entre o ano de 1300 e 1600 é inteiro marcado por essas inovações, que foram impulsos racionais influentes na nossa mentalidade até os dias de hoje. Portanto, para entender esta transição, é preciso fazer um pequeno resgate dos valores medievais, posto que o Renascimento é, automaticamente, uma negação dos mesmos.
No século IX, surgiu uma ordem filosófica chamada Escolástica, que visava manter uma unidade no Cristianismo ao clarificá-lo. Abandonando os traços clássicos e helenísticos que tivera a filosofia ocidental até então, a Escolástica lançou-se no estudo das artes e ciências, mas sempre em função da religiosidade, tentando estabelecer um ponto em comum entre fé e razão. Para isso, voltaram seus estudos à metodologia científica árabe, povo que exercia uma grande influência na Península Ibérica, devido à ocupação moura dos séculos VIII ao XV. Os ensinamentos do Islam abriram espaço à investigação da Matemática, que acabou se desdobrando na Física e na Astronomia. A arte islâmica não admite figuração; suas bases são a geometria, porque esta é a base do Universo; as formas orgânicas são efêmeras, e, por isso, meramente transitórias, lembranças da carne.
Uma questão que entrou em debate durante esse período foi, justamente, a herança bizantina iconoclasta, resultante de uma interpretação literal dos Dez Mandamentos; mesmo legalizadas, alguns dos escolásticos ainda achavam as imagens perigosas, podendo desvirtuar a fé do povo. Mas, devido à restrição cultural deste, perceberam que as ilustrações podiam auxiliá-lo a compreender melhor as passagens da Bíblia, inspirar temor e compaixão, como imagens de um mundo sobrenatural que nos escapa aos sentidos humanos. Depois de muitas discussões, decidiu-se que o valor didático dessas imagens era inegável, e, ao invés de proibir, fez-se necessário instruir a população da diferença entre essas meras invocações e as entidades imateriais. (De fato, até o século XII era proibido mostrar o Cristo na Paixão: as representações tinham de ser serenas, controladas, com uma calma que confortasse os espíritos angustiados. Com a nova empresa escolástica de instrução visual, o Cristo crucificado deixou de ter uma conotação humilhante para se tornar um lembrete de que Ele sofreu por nós, e que a expiação dos pecados se dá pela dor.)
Então, em princípio, o objetivo das representações visuais no medievo não visa uma cópia fiel da realidade, mas sim um lembrete de como a humanidade é imperfeita ante ao divino. As figuras adquirem valores alegóricos, traduzindo conceitos, e o uso constante do fundo dourado indica uma abrangência, ou seja, aquela cena poderia ocorrer em qualquer parte do planeta, mostrando a onipresença divina e a inexorável mácula do pecado que carregam todos os homens, não importa quem são e de onde vêm. Quanto ao esquema de proporções, inicialmente utilizava-se o cânone bizantino dos três círculos (um circunscrevendo a face, o outro os limites da cabeça, e o último, a auréola); mais tarde, de acordo com o pensamento de que a face é o espelho da alma, estabeleceu-se o comprimento do corpo humano em nove medidas de face; por fim, já no Final do Gótico, quaisquer cânones parecem ter entrado em declínio em favor do subjetivismo, o que poderia ser interpretado como um abandono total da racionalidade.
E é justamente neste ponto em que as coisas divergem: quando se abolem as regras estilísticas, abre o espaço para novas e ousadas soluções artísticas que provêm tanto de um artista isolado quanto de um coletivo específico. Some-se a isso descobertas científicas (que sempre mudam nossa visão de mundo) e uma tendência original começa a despontar. No caso do pré-Renascentismo, como cabe melhor chamar essa transição incerta, foram descobertas matemáticas que aos poucos deram a base técnica para que se passasse do estilo planar e ornamental medievo ao realismo vivo tão característico do quinhentos: o Livro de Óptica (Kitab al-Manazir), do árabe Ibn Al-Haytham, mais conhecido ocidentalmente como Alhazen, que consiste num tratado sobre Óptica, Física, Matemática, Psicologia e Anatomia, deu origem à uma nova percepção, sendo resgatado e absorvido pelos renascentistas, assim como bebiam nas fontes de Euclides, Ptolomeu, Vitrúvio e outros textos gregos que começaram a se espalhar pela Itália depois da queda de Constantinopla. O interesse nas medidas objetivas fora avivado novamente, ora comprovando os ensinamentos clássicos, ora complementando, ora utilizando-os como base para outras teorias. O homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, é um exemplo claro da retomada de medidas clássicas nos estudos – o homem com os braços abertos inscreve-se num quadrado, e com os braços e pernas estendidos, num formato meio estelar, inscreve-se num círculo descrito em torno do umbigo. Os renascentistas, porém, foram muito mais longe, corrigindo as proporções gregas, e acrescentando um espírito subjetivista ainda maior; as imagens não era mais simples invocações, independentes do mundo real, mas sim cenas vistas pelos olhos de alguém, com todas as deformações que o olho humano proporciona.
Isto é natural do pensamento humanista e antropocêntrico que ganha cada vez mais lugar na filosofia, culminando até numa reforma religiosa protestante, que contesta os valores incrustados como verdade absoluta até então. Porém, vale a pena notar que a persuasão racional e científica dos “humanistas” da Renascença aplica-se mais à Itália, sendo diferente a evolução artística no Norte, que permaneceram mais isolados durante a primeira fase renascentista. De fato, a pintura flamenga começou a se desenvolver somente no Alto Gótico, com Jan Van Eyck e Hans Holbein, por exemplo, e manteve um pouco dessas características através do Renascimento. As descobertas matemáticas não passaram em branco, mas eram secundárias considerando que cada pequena comunidade dentro daquela região tinha seu próprio estilo, e os artistas tinham de se adequar ao gosto de seus clientes, que geralmente representavam uma ordem religiosa cheia de cânones e regras. Além disso, o povo flamengo não concebia uma distância histórica desde o Gótico, diferentemente dos italianos, que não se identificavam em nada com aquele tipo de mentalidade "bárbara". (A própria palavra Gótico vem de uma denominação pejorativa renascentista relativa aos Godos, bárbaros que se estabeleceram na Germânia, porque pensava-se que o estilo tinha sua origem naquela região. Só mais tarde, no séc. XIX, quando começaram os estudos metodológicos de História da Arte é que se descobriu que o Gótico havia começado na França, mais especificamente por causa da reforma que o abade Suger fizera em St-Denis baseada em conceitos neoplatônicos.)
Os os artistas espanhóis, que tiveram muita influência flamenga por causa da preferência de Filipe I, O Belo, por esse tipo de arte, eles se inspiravam em (xilo)gravuras medievais, vitrais, e antigos mestres locais. Com a reforma protestante, os conflitos religiosos se intensificaram e os países baixos mantiveram a diversidade de estilos que sempre os diferiram dos movimentos correntes pela Europa. Sendo Roma o centro de toda a doutrina católica, os conceitos demoravam a chegar e eram deturpados pelo caminho.
A partir de 1600, entrou em vigência o estilo Barroco (comumente aceito como “pérola irregular”), que era patrocinado pela Igreja para arrebanhar de volta os fiéis perdidos com o protestantismo, sendo acompanhado de duras políticas como a Inquisição (baseada no Malleus Maleficarum, um tratado sobre bruxaria que coloca a mulher como o ser mais vulnerável e sujeito à dominação de Lúcifer). Porém, diferentemente da mentalidade medieval, o Barroco assumia um caráter mais racional, sendo um exemplo exímio de argumentação lógica, mas ainda totalmente presa à fé, os Sermões do Padre Vieira. O uso de motivos mitológicos é tão corrente quanto no Renascimento, porém eles têm um valor fragmentário muito maior, estando totalmente descontextualizados e servem, de certa maneira, de pedras construtivas dentre tantas outras para servirem a um propósito de Deus. Primando a unidade íntegra do todo, mas não no sentido estético renascentista resgatado do conceito de Uno de Plotino, que afirmava estar a beleza na relação entre as partes e no conjunto, e sim para demonstrar o quão intrincado e complexo é o espírito humano, em que as características se fundem, se influenciam e contribuem igualmente para o todo – só uma alma verdadeiramente pura e com todas as suas partes em harmonia e consonância podia ter um lugar garantido no céu. Por esse motivo, a arte barroca apresenta uma unidade visceral entre suas partes, sendo também dramática, opressora e visivelmente chocante com o propósito de despertar as pessoas de seus devaneios egocêntricos e mundanos para as coisas divinas. É, também, teatral, mostrando o grande palco de encenações que é a vida. Se o Renascimento pode ser definido com a perfeição eqüidistante de um círculo, o Barroco encontra seu ritmo na elipse, nem sempre linear, constante, mas que por fim volta ao princípio, fechando um padrão mais difícil de ser reconhecido, mas não menos determinante e influente. Isso explica também o fato da arte barroca se manifestar de maneiras tão diferentes, todas possuindo um dinamismo emotivo tão intenso que comove mesmo aqueles que se acham intocáveis.

1 xxx:

Beatrix Miranda disse...

esqueci de mencionar duas coisas: os Medicis, uma família poderosa que financiava a arte renascentista italiana (primeiros patronos da arte!) e impunham tantas ou mais condições que as confrarias e ordens religiosas flamengas; e o Maneirismo! simplesmente pulei todo um estilo, que fica entre o Renascimento e o Barroco, o início da contestação que levaria de um ao outro. El Greco era maneirista; utilizava-se de alguns recursos góticos de expressão para imprimir sua marca individual (por isso Maneirismo, à maneira de cada um). já não se levavam tão em conta o realismo sereno obtido através dos ensinamentos gregos, e ao mesmo tempo veio surgindo a contra-reforma... e o resto ta aí.