20080830

As Quedas de Ícaro - análise de quatro pinturas do tema sob contexto Renascentista e Barroco, parte II

Renascimento Flamengo.


PAISAGEM COM A QUEDA DE ÍCARO (De Val Van Icarus) – Pieter Bruegel, O Velho, 1554-5.
Óleo sobre tela. Museu Real de Belas-Artes da Bélgica.




Há controvérsias quanto a autoria desta pintura ser mesmo de Peter Bruegel, após estudos técnicos realizados em 1996. Mas, ainda que não seja original, é tido, ao menos, como uma cópia de um original Bruegel perdido.
No primeiro plano vêem-se um lavrador com roupagens medievais virado para a esquerda segurando um arado, que é puxado por um cavalo monte abaixo. Há uma vegetação esparsa e franzina. Descendo o terreno acidentado, vemos um pastor com o seu rebanho pastando, um cachorro e duas ovelhas negras. Ele apóia-se em seu cajado e apresenta um ar pensativo, também de costas para o lado direito do quadro e trajado à maneira medieval. O centro geométrico do quadro é o vazio do mar, com uma pedra e o que parece ser uma ilhota com uma espécie de forte, à esquerda. Mais ao fundo, depois de um terreno de rochas claras, vemos uma cidade com uma pequena baía e um galeão aportado, de onde parecem ter saído os outros dois galeões e os três barcos. Vemos um sol poente primaveril, com algumas montanhas e uma ilha que parece ser habitada. No canto inferior direito, há um pescador, uma perdiz empoleirada e um homem que se afoga.
Se não fosse por esse pequeno detalhe, esta seria uma representação comum do quotidiano. É nele que está contido todo o interesse do quadro: o homem que se afoga, deixando só suas pernas visíveis, é Ícaro, personagem da mitologia grega, rodeado pelas poucas penas que sobraram de suas asas e que confundem-se com as ondas do mar que ele mesmo provocou. O mar é o Egeu, a cidade à esquerda é Creta, de onde Ícaro tentava escapar com seu pai, Dédalo. Este era um dos maiores artesãos de Atenas, que um dia foi condenado pelo assassinato de seu pupilo e sobrinho, Perdix, diziam que porque temia ser superado por ele, e é exilado em Creta. Lá, ele constrói muitas maravilhas para o rei Minos, inclusive uma vaca de madeira oca com rodas para que a rainha pudesse copular com um touro. Mas, como resultado, nasce o Minotauro. A criatura, metade humana e metade touro, mostra-se violenta e Dédalo, às ordens do rei, constrói um labirinto para encerrá-la, que mais parecia um palácio. Tudo corria dentro dos conformes até que Teseu, de Atenas, consegue derrotar o Minotauro e escapar do labirinto utilizando um fio de lã que Ariadne, a filha do rei Minos, segurava na entrada. Dédalo é acusado de fornecer o novelo à Ariadne, e, portanto, um traidor, ficando preso na ilha junto com seu filho. Sendo vigiados em terra e mar, Dédalo resolve construir dois pares de asas para que pudessem escapar, montando a estrutura com madeira, penas e cera. Antes de alçarem vôo, adverte a seu filho Ícaro que não voe nem muito baixo, para não molhar as penas na água, e nem muito alto, para que o sol não derreta a cera. Depois de algum tempo de vôo, Ícaro, empolgado com a liberdade, vai para longe de seu pai e acima das nuvens, o que faz a cera derreter e as penas soltarem-se. Tentou recuperar a altura em vão, e enquanto caía para seu destino, chamou pelo nome do pai, que foi abafado pelo vácuo. O lugar em que caiu passou a chamar-se mar Icário.
É interessante indagar por que Bruegel fez do motivo principal da pintura um detalhe quase imperceptível, tão discreto que nem o pescador, a personagem que se encontra mais perto dele, nota a tragédia; talvez somente a ovelha que vai beber água, à esquerda. Os três galeões em progressão, como se remontassem a um único movimento, juntamente com a baía e os rochedos, aprisionam a cena. Mesmo tendo Bruegel estudado na Itália, a perspectiva da pintura não é matemática, mas contém uma noção de escala e a deformação do horizonte acompanhando a curvatura da Terra. Apesar de estar perto da baía, Ícaro afunda em águas negras muito profundas.
Bruegel possuía uma primazia por cenas do quotidiano, que também é característico de todo o humanismo que permeia o pensamento renascentista, mas com uma abordagem naturalista flamenga, ao contrário dos italianos, e com resquícios góticos. A proximidade de Ícaro do galeão e o sol poente podem indicar que o artista tenha preferido uma visão mais realista do mito, que surgiu no período helenístico de maneira filosófica: Dédalo teria, na verdade, construído velas mais potentes que aquelas de Minos, e Ícaro, caído do galeão que usavam para fugir e se afogado. Mas, como são visíveis algumas penas à deriva, esta leitura fica um pouco prejudicada.
A perdiz ao lado do pescador significa que Bruegel era familiarizado com a Metamorfose, de Ovídio, em que a perdiz é o sobrinho assassinado de Dédalo. Este, tendo sido jogado do alto de uma torre pelo tio, foi transformado numa ave por Minerva antes de chegar ao chão, agora evitando lugares altos, preferindo empoleirar-se, ainda traumatizado com a queda.
Ele pode querer chamar a atenção para como a mitologia parece insignificante perto mundo real, da vida real, como delírios doutra época agora submersos e superados pela valorização do homem em suas ocupações costumeiras, o que é corroborado pela própria história de Ícaro, que tentou ir alto demais, longe demais da terra, e por isso fracassou. O sol que derreteu suas asas já encontra-se no horizonte, como o crepúsculo do paganismo: o mundo não gira em torno de mitos, continua a seguir seu caminho, deixando-os para trás. Porém, como já era de costume na Idade Média, os motivos mitológicos ganham outra leitura que não a pagã, o que pode ser visto pela vestimenta atualizada dos trabalhadores; adquirem, então, uma moral alegórica, podendo ser vista como uma repreensão às ambições descomedidas, assim como pode representar a teimosia ou desobediência, relutância em aceitar condições inexoráveis e ignorar os riscos de conseqüências. Tendo em conta a perspectiva usada por Bruegel e a tendência renascentista de retratar a visão pessoal de alguém, pode-se presumir, ainda que forçosamente, que esse alguém seja o próprio Dédalo, já que não se encontra em lugar algum da cena, a olhar o filho cair, impotente. É, então, o pai desolado com a arrogância do filho, que paga com sua própria vida o preço da desconsideração.
Muitas vezes Ícaro é associado à condição do poeta, a suas ambições de glória literária que o distanciam das exigências da realidade e o levam a empreender vôos que o expõem a graves riscos. O quadro de Bruegel mostra a distância incomensurável entre as humildes tarefas do dia-a-dia do homem comum - que ara a terra, que cuida das ovelhas, que navega pelo mar – e as preocupações de criação literária próprias do poeta, do escritor, representados pelo vôo de Ícaro. Ao mesmo tempo, denota a indiferença do resto do mundo ao sofrimento individual, que por maior que seja não tem o poder de comover a todos – as mortes se dão, ainda que seja primavera. O arador continua a arar, o galeão tem um destino e segue calmamente seu caminho. O pastor, mesmo tendo estado a observar o céu, também não se abala. Terá ele ouvido os gritos? Bruegel geralmente mostra a humanidade como sendo algo patética e grotesca.
Outra leitura, considerando o estilo de Bruegel no geral dar um extremo valor aos detalhes, mostrando como eventos aparentemente sem relação contribuem para a harmonia e construção do todo, considera Ícaro como o elemento-chave no meio de tantas distrações ; para usar um dito popular, “a beleza está nos detalhes”, sendo “beleza” uma variável facilmente substituída por Deus ou qualquer outro termo que designe uma importância maior. É muito fácil de se obter um panorama geral com uma olhadela, mas só um estudo um pouco mais aprofundado pode revelar coisas essenciais que são ignoradas pela maioria.



PAISAGEM COM A QUEDA DE ÍCARO - Hans Bol, 1567.
Aquarela sobre papel. Museu Mayer van der Berg, Antuérpia.





Logo de primeira vemos muitas semelhanças com o quadro de Bruegel: o lavrador com o arado e cavalo, o pescador, o pastor, as ilhotas e a baía. A paisagem perde-se no azul infinito, enquanto que em primeiro plano, estão todos – até os cachorros – olhando para as duas figuras aladas que pairam acima. Curiosamente, há mais duas figuras aladas, só que em terra, numa ilha com árvores, rochedos e um castelo. Essas são as principais diferenças entre as duas representações: todos notam e se interessam pelo fato de que há dois homens no céu, uma cena que devia parecer muito mais inusitada para um homem quinhentista do que nos tempos de hoje. É um interesse não só pelo fantástico, característica muito forte na arte flamenga primitiva e renascentista, mas que também combina-se com a expectativa e o medo de que algo aconteça e a liberdade alada não dure muito tempo para eles, o que de fato acontece com Ícaro, que já pode ser visto mais longe que o pai, vestindo amarelo e voando no sentido contrário, em direção à fonte de luz. Uma nuvem negra paira em cima de sua cabeça, a qual ele irá ultrapassar sem pensar duas vezes e que provavelmente esconde atrás de si a luz e o calor que será a ruína de Ícaro. As duas outras duas figuras portando asa, na ilha, podem estar ali para mostrar que os dois saíram da torre daquele castelo, que o vôo mal começara, e Ícaro já tomava a dianteira ignorando os conselhos do pai. Eles têm as mesmas cores das vestes de Ícaro e Dédalo, então, portanto, poderiam ser uma pequena recapitulação do treino de vôo; ou dois gozadores, imitando os movimentos como se estivessem no céu, mas sem ousar deixar a segurança da terra, porque sabem não serem pássaros e que voar não é e não deve ser natural do ser humano. Contentam-se em meramente reproduzir, ao invés de arriscar-se a objetivos impossíveis. Eles também indicam que o que aparece no céu não são anjos ou figuras divinas, mas homens comuns com artifícios.
Os cavalos, que demonstram estar perturbados, talvez pressintam que aquela empreitada termina em tragédia. O homem sentado no canto inferior direito, segurando uma vara de madeira, parece comentar também que aquilo não era certo, criticando a ousadia dos dois fugitivos e tecendo as possíveis consequências, e não sai de seu conforto nem para espiar melhor o que vai acontecer. O resto das personagens todas (o outro homem sentado, que ouve os comentários sem dar muita atenção, o homem em pé ao lado do cachorro, os próprios cachorros, o lavrador, os dois pescadores e o pastor) param o que estavam fazendo para contemplar. A perspectiva é mais acurada matematicamente, mostrando os camponeses num terreno mais baixo e que ressalta a altura em que voam Dédalo e Ícaro, num contraste muito forte entre o primeiro plano, com cores orgânicas e ligadas à terra, com o azul que representa o sítio a ser conquistado com o vôo, irreal e quase cósmico. Mas tanto Bol quando Bruegel, tendo gosto por paisagens, incluem uma dimensão ampla para o seu cenário, tanto querendo mostrar que a ambição humana é pequena demais, comparada a tudo o que pode ocorrer na vastidão do caminho, mas a diferença na paleta de Bol, muito mais fria, destaca ainda mais a dificuldade das conquistas.
Indo um pouco mais longe, abrindo a interpretação numa crítica à contemporaneidade dos dois, a saga de Ícaro pode ser vista como o homem renascentista, ou humanista, como eles mesmos preferiam se denominar, na eterna e infrutífera busca de aproximação com o divino por meio da análise do mundo que Ele criou, ultrapassando sem pestanejar todas as nuvens negras que se interpõem. Ou seja - só uma visão destacada da realidade terrena, metaforicamente colocada como uma vista dos céus, pode levar a conclusões mais acertadas, mas, como não é essa a natureza humana, os tropeços e riscos estragar os próprios meios de estudo e cair no mar e são muito grandes; e nem se precisa de um calor muito intenso para derreter e inutilizar todo o esforço feito. A luz, nesse sentido, também tem um papel extremamente importante: se no Gótico ela era a própria manifestação do divino, no Renascimento representa o conhecimento a ser desvendado. O problema é que, quando não se está acostumado com muita luz, o brilho inicial é tão cegante quanto a escuridão e leva ao mesmo tipo de desnorteamento, mas talvez agora causado não pela ignorância, e sim pela arrogância e má interpretação dos novos conceitos.
Ícaro representa l’uomo singolare, aquele que mantém controle de seu destino até que sua ambição fique à frente, mais como um ato humano do que um castigo divino. É um símbolo do livre arbítrio renascentista, que ainda não sabe muito bem que caminho seguir após tanto tempo sob o cativeiro da Providência divina do medievo. Características humanas como curiosidade ao que não diz respeito e a mania de se vangloriar, que são geralmente causas primeiras de uma tragédia, são inconcebíveis sem a liberdade de escolha e a inevitabilidade da morte. Mas, apesar de Ícaro encarnar muitas das falibilidades humanas, no Renascimento ele se mantém como um modelo positivo de determinação.