quem saiu de casa nesta sexta-feira paulistana pôde ver o halo que se formou em torno do Sol, por conta da refração em cristais de gelo nas nuvens. alguns aproveitaram o fenômeno de maneira religiosa, dizendo que é uma aliança com Deus, outros pensaram em Óptica; eu lembrei de Ra (r’).
Amun (transliteração ocidental de ‘mn, em egípcio, que originalmente quer dizer aquele que está escondido), deidade solar tebana que foi gradativamente ganhando importância depois da expulsão dos hicsos, pois Tebas havia sido a capital da vitória. acabou se fundindo por semelhança com outro deus cultuado noutras regiões, chamado Ra-Herakhty, que por sua vez já era uma fusão entre Ra e Horus; disso nasceu Amun-Ra, Amun sendo o lado invisível noturno do Sol, isto é, quando ele está no submundo (Duat), e Ra, visível diurno, que se subdivide em duas partes - Khepri (hpr), sol nascente, significando vir a ser, e Atum (‘tm), sol poente, significando estar completo. estas diferenças abrem caminho para uma variabilidade iconográfica imensa para Ra, que vai desde o carneiro tebano até o Sol com raios que terminam em mãos humanas.
mas antes, uma pequena lição de egípcio. hieróglifo quer dizer “escrita de Deus”, ou “escrita sagrada”. há três tipos deles– os fonéticos, que podem se mono, bi ou triliterais, dependendo de quantos fonemas representam; os determinantes, que têm função semântica; e os ideogramas, que representam um conceito. à semelhança de outras línguas orientais como o hebraico e o árabe, não se escrevem vogais, porém, há dois glifos que indicam um respiro vocálico, geralmente transliterado ocidentalmente como a, e outro que indica um som gutural, geralmente transliterado i (aqui descritos ambos como ‘). já o kh, que vemos tanto nos nomes egípcios, vem de um h gutural*, de som parecido com o loch escocês. o resto das vogais é basicamente reconstruído a partir de hipóteses, já que alguns encontros consonantais sugerem uma vogal específica. peguemos então como exemplo ‘mn:
o respiro vocálico de que falei é o primeiro glifo, a cana de açúcar (que, dobrada, torna-se um y). em seguida, no pedaço de tecido com franja lê-se o biliteral mn, que é reforçado pela onda logo abaixo, que neste contexto é um complemento fonético significando n. já o homenzinho é o determinante de deidade, para mostrar que falamos do deus Amun, e não outra palavra formada pelas mesmas consoantes. desta maneira, os glifos deixam de ter seu sentido estritamente ligado à iconografia, tornando-se representantes daquele fonema específico que é dependente de outros glifos para a significação. não é de surpreender que haja inúmeras maneiras de se escrever a mesma coisa, dependendo da dinastia vigente e a importância que cada uma atribui aos glifos e sua organização no espaço de acordo com valores estéticos. vamos demonstrar isso melhor com Khepri, agora entrando de novo na mitologia.
o escaravelho-bosteiro**, muito comum nos desertos africanos, chamava a atenção dos egípcios por causa da bola de esterco que ele rolava até seu buraco no chão, onde, depois da fecundação, se depositavam os ovos. ao virarem larvas, elas comiam seu caminho para fora da bola e dali um tempo eclodiam novos escaravelhos rumo à superfície. os egípcios acreditavam que só existia o besouro macho, e que este depositava o seu esperma diretamente na bola de esterco, que deu origem ao conceito de ressurreição (vida a partir da matéria putrefata), ou vir-a-ser espontâneo. então, a bola de esterco virou um paralelo para o Sol, e o escaravelho, uma representação de Ra nascente, que empurra o Sol através do céu até tornar-se Atum e desaparecer no Duat, onde se renova para cada dia. Ra nascente ganhou o nome de Khepri (hpr’), e o vir-a-ser é o verbo kheper (hpr). daí, surgiu o glifo do escaravelho, tendo por significado justamente o triliteral hpr, que assume outras leituras dependendo do contexto. então, o nome*** de Khepri:
o escaravelho hpr; a boca r; a cana, que indica o som ‘; e o determinante de deidade. há muitas ocorrências de dois complementos fonéticos para triliterais, neste caso o p, que é suprimível, ou então aparece antes do próprio hpr. outra opção também é colocar um complemento de h (iconogr.: a placenta) antes do escaravelho, e somente o r depois, enquadrando o glifo principal. mais raro ainda é encontrar os três complementos juntos.
e por que tudo isso? para chegar em Ra, que toma emprestado o próprio Sol:
ou, num ideograma,
temos ali então r’, a boca e o braço, mais o determinante solar que acaba por ser o glifo principal. ele indica não só o Sol em si (que aliteração), mas também ações solares como dia, aurora, e noções de tempo como ontem, hora e eternidade; todas lembrando, claro, Ra e seu eterno fardo de carregar o Sol. sua iconografia remete não só ao movimento circular infinito, mas também ao ponto central, a partir do qual tudo é criado; a totalidade e completude. e ontem, ao contemplar o halo multicor que aprisionava o Sol, pergunto-me se os antigos egípcios não teriam presenciado o mesmo fenômeno sublime e rapidamente transferido essa manifestação de Ra num glifo que se encontra dentre os mais importantes na língua.
* o correto seria utilizar o h fonético correspondente, que leva uma laçada embaixo; mas o blogger não aceita esse tipo de símbolo. o mesmo acontece com as letras fonéticas dos respiros vocálico e gutural.
** nos rituais funerários, um escaravelho era colocado no lugar do coração do morto, para que o protegesse de revelar seus pecados na cerimônia da pesagem do coração, garantindo assim a passagem para a outra vida. fica aí também explicada a iconologia de ressurreição da minha tatuagem no pulso esquerdo (o pulso do coração), para os curiosos. além disso, as cores relacionadas à ressurreição no antigo Egito eram o turquesa, que usei na minha tatuagem, e o negro. podem reparar que a grande maioria dos escaravelhos nos murais egípcios levam justamente essas duas cores.
*** praticamente toda a escrita egípcia derivou da importância dos nomes. não havia como distinguir entre os nomes dos faraós, dos deuses e as outras denominações, então a solução foi diferenciá-los visualmente. havia, também, uma crença muito forte de que a imortalidade de uma pessoa estava diretamente ligada aos registros de seu nome; quanto mais ocorrências, maiores as chances de sobreviver neste mundo. por isso, os nomes dos faraós são sempre contidos em cartuchos, para maior preservação.
20080830
‘mn-r’ e o halo solar, ou: uma pequena consideração sobre a iconografia dos hieróglifos
As Quedas de Ícaro - análise de quatro pinturas do tema sob contexto Renascentista e Barroco, parte III
Barroco Flamengo/Italiano.
A QUEDA DE ÍCARO - Peter Paul Rubens, 1636-8.
Óleo sobre tela. Museu de Arte Antiga, Bruxelas.
Rubens retrata Ícaro e Dédalo lado a lado. O primeiro cai, em desespero, e podemos ver seu rosto de agonia ao tentar olhar uma última vez para o pai, pedindo auxílio. Este, sem nada que pudesse fazer, continua a voar e encara o filho com um ar grave, mas passivo, como se tivesse aceitado o seu destino e dissesse a ele com os olhos que isto era suposto acontecer. Não esqueçamos que Dédalo era um assassino, e não foi Ícaro o primeiro homem que ele levou às alturas para depois fazê-los despencar. Há uma discrepância com o que dizem os textos clássicos, que deixam claro estar Dédalo muito longe de Ícaro até para ouvir os gritos, neste momento. A impressão que Rubens passa é que Ícaro na verdade estava logo acima de seu pai, mas ainda assim muito afastado, e o momento que ele escolheu para eternizar na tela foi o nanossegundo da queda em que pai e filho se cruzam pela última vez. Isto, de fato, pode explicar muito não só sobre a arrogância de Ícaro, mas a relação entre uma pessoa mais experiente, automaticamente mais contida em suas ações por não querer arriscar tudo o que tem construído em sua vida, e a empolgação curiosa da juventude; de certo modo, Dédalo inveja a pureza inocente do filho assim como invejou as habilidades de artesão de seu pupilo, e quando o vê caindo, não se move para ajudá-lo porque acha que, se foram as ações dele que o levaram à queda, então nada mais justo que se afogue no mar. Isto é muito característico da mentalidade barroca, que coloca uma conotação negativa em Ícaro, agora encarnando o espírito dos hereges fazendo seu caminho para a perdição ao não ouvir os ensinamentos do Catolicismo. E Dédalo, por mais que represente a voz da consciência religiosa, ainda assim não é livre das impurezas humanas e a falta de compaixão mostrada nos diz que, pelo menos em algum sentido, ele está aliviado pelo fato de Ícaro receber um castigo por suas ações descomedidas - o que valoriza ainda mais a importância de se manter num caminho digno.
A posição de Ícaro também não é nada lisonjeira, o corpo retorcido e de cabeça para baixo, um outro simbolismo. Ícaro está sendo tragado de volta por forças inevitáveis, e a partir desse momento as coisas se invertem: dantes, rumava de peito aberto e cabeça levantada aos céus, e agora, cai desengonçado, de ponta-cabeça, para encontrar seu destino terrível. O tecido rosa coral é a única cor vívida do quadro; o que é intrigante, pois o coral no Barroco é a representação material do imaginário, como se o fracasso de Ícaro se devesse ao fato de estar ele vestido de fantasias. A cena inteira é banhada de amarelo, lembrando a causa da queda. (Note-se a diferença de expressão e elasticidade estilística que encontramos entre a arte do Norte e a italiana, a seguir.) Interessante é também questionar o momento exato em que o sol deixa de ser agradável para tornar-se cruel, e perceber que há uma linha indefinível entre as ações consideradas corretas e aquelas que podem levar à perdição.
A QUEDA DE ÍCARO – Carlo Saraceni, 1600.
Óleo sobre tela. Museo e Gallerie Nazionali di Capodimonte, Nápoles.
A intermediária das três telas da série (sendo as outras duas O Vôo de Ícaro e O Enterro de Ícaro), Saraceni monta uma composição que possui elementos em comum tanto com a visão ampla de Bruegel e Bol, quanto a relação pai-filho que coloca Rubens. Podemos ver a baía, mas Creta já muito distante; o pescador, no canto direito, com um homem montado a cavalo de manto rosa que aponta para os dois homens alados; Ícaro, que cai de costas com os braços abertos e uma asa danificada, as penas a soltarem-se; Dédalo, que olha para trás e se dá conta de que o filho cai e não há nada que se possa fazer; e, finalmente, o sol, imponente, que pode resplandecer forte no céu azul e límpido. Duas outras figuras humanas, mais distantes, também parecem olhar para a cena. Porém, quem possui o manto rosa coral agora é Dédalo – o de Ícaro presumidamente já se soltou durante a queda, mostrando que agora, despido de sua parte fantástica, não há outro destino senão encarar a dura realidade da morte. Os espectadores não parecem estar muito chocados com o que vêem, apesar de comentarem, simplesmente parece que, se o problema não é com eles, então não há motivo para comoção. Ao contrário do padrão barroco, a luz não é exageradamente dramática nem indireta, mas se faz incomodamente presente no quadro todo, retomando a idéia de que não é só a escuridão que é alienante.
Ícaro, ao cair de costas, sabe que está fadado, mas ainda assim é obrigado a contemplar o céu e o sol que tentou conquistar, enquanto avança sem saber o que o espera embaixo. Saraceni pintou só uma das asas destruída, o que pode significar que, mesmo com algumas virtudes intactas, um lado sadio, não é só o que basta para seguir em frente, e muito menos alçar vôos mais altos – se uma parte é podre, ela vai sobrepujar as boas qualidades, remetendo à integridade compositiva do Barroco. Dédalo, mesmo tendo voado mais baixo, é representado à frente de Ícaro, de onde tudo o que lhe resta fazer é olhar para trás: como se também deixasse afogar sua própria parte fraca (afinal de contas, Ícaro, sendo seu filho, é uma extensão dele mesmo), já tendo ultrapassado a fase de irresponsabilidade. As asas frágeis de Ícaro podem também representar uma falsa ascensão aos céus, isto é, por meios que não aqueles pregados pelo Catolicismo, e que será devidamente punido. Quanto mais alto o vôo, mais dura é a queda.
As Quedas de Ícaro - análise de quatro pinturas do tema sob contexto Renascentista e Barroco, parte II
Renascimento Flamengo.
PAISAGEM COM A QUEDA DE ÍCARO (De Val Van Icarus) – Pieter Bruegel, O Velho, 1554-5.
Óleo sobre tela. Museu Real de Belas-Artes da Bélgica.
Há controvérsias quanto a autoria desta pintura ser mesmo de Peter Bruegel, após estudos técnicos realizados em 1996. Mas, ainda que não seja original, é tido, ao menos, como uma cópia de um original Bruegel perdido.
No primeiro plano vêem-se um lavrador com roupagens medievais virado para a esquerda segurando um arado, que é puxado por um cavalo monte abaixo. Há uma vegetação esparsa e franzina. Descendo o terreno acidentado, vemos um pastor com o seu rebanho pastando, um cachorro e duas ovelhas negras. Ele apóia-se em seu cajado e apresenta um ar pensativo, também de costas para o lado direito do quadro e trajado à maneira medieval. O centro geométrico do quadro é o vazio do mar, com uma pedra e o que parece ser uma ilhota com uma espécie de forte, à esquerda. Mais ao fundo, depois de um terreno de rochas claras, vemos uma cidade com uma pequena baía e um galeão aportado, de onde parecem ter saído os outros dois galeões e os três barcos. Vemos um sol poente primaveril, com algumas montanhas e uma ilha que parece ser habitada. No canto inferior direito, há um pescador, uma perdiz empoleirada e um homem que se afoga.
Se não fosse por esse pequeno detalhe, esta seria uma representação comum do quotidiano. É nele que está contido todo o interesse do quadro: o homem que se afoga, deixando só suas pernas visíveis, é Ícaro, personagem da mitologia grega, rodeado pelas poucas penas que sobraram de suas asas e que confundem-se com as ondas do mar que ele mesmo provocou. O mar é o Egeu, a cidade à esquerda é Creta, de onde Ícaro tentava escapar com seu pai, Dédalo. Este era um dos maiores artesãos de Atenas, que um dia foi condenado pelo assassinato de seu pupilo e sobrinho, Perdix, diziam que porque temia ser superado por ele, e é exilado em Creta. Lá, ele constrói muitas maravilhas para o rei Minos, inclusive uma vaca de madeira oca com rodas para que a rainha pudesse copular com um touro. Mas, como resultado, nasce o Minotauro. A criatura, metade humana e metade touro, mostra-se violenta e Dédalo, às ordens do rei, constrói um labirinto para encerrá-la, que mais parecia um palácio. Tudo corria dentro dos conformes até que Teseu, de Atenas, consegue derrotar o Minotauro e escapar do labirinto utilizando um fio de lã que Ariadne, a filha do rei Minos, segurava na entrada. Dédalo é acusado de fornecer o novelo à Ariadne, e, portanto, um traidor, ficando preso na ilha junto com seu filho. Sendo vigiados em terra e mar, Dédalo resolve construir dois pares de asas para que pudessem escapar, montando a estrutura com madeira, penas e cera. Antes de alçarem vôo, adverte a seu filho Ícaro que não voe nem muito baixo, para não molhar as penas na água, e nem muito alto, para que o sol não derreta a cera. Depois de algum tempo de vôo, Ícaro, empolgado com a liberdade, vai para longe de seu pai e acima das nuvens, o que faz a cera derreter e as penas soltarem-se. Tentou recuperar a altura em vão, e enquanto caía para seu destino, chamou pelo nome do pai, que foi abafado pelo vácuo. O lugar em que caiu passou a chamar-se mar Icário.
É interessante indagar por que Bruegel fez do motivo principal da pintura um detalhe quase imperceptível, tão discreto que nem o pescador, a personagem que se encontra mais perto dele, nota a tragédia; talvez somente a ovelha que vai beber água, à esquerda. Os três galeões em progressão, como se remontassem a um único movimento, juntamente com a baía e os rochedos, aprisionam a cena. Mesmo tendo Bruegel estudado na Itália, a perspectiva da pintura não é matemática, mas contém uma noção de escala e a deformação do horizonte acompanhando a curvatura da Terra. Apesar de estar perto da baía, Ícaro afunda em águas negras muito profundas.
Bruegel possuía uma primazia por cenas do quotidiano, que também é característico de todo o humanismo que permeia o pensamento renascentista, mas com uma abordagem naturalista flamenga, ao contrário dos italianos, e com resquícios góticos. A proximidade de Ícaro do galeão e o sol poente podem indicar que o artista tenha preferido uma visão mais realista do mito, que surgiu no período helenístico de maneira filosófica: Dédalo teria, na verdade, construído velas mais potentes que aquelas de Minos, e Ícaro, caído do galeão que usavam para fugir e se afogado. Mas, como são visíveis algumas penas à deriva, esta leitura fica um pouco prejudicada.
A perdiz ao lado do pescador significa que Bruegel era familiarizado com a Metamorfose, de Ovídio, em que a perdiz é o sobrinho assassinado de Dédalo. Este, tendo sido jogado do alto de uma torre pelo tio, foi transformado numa ave por Minerva antes de chegar ao chão, agora evitando lugares altos, preferindo empoleirar-se, ainda traumatizado com a queda.
Ele pode querer chamar a atenção para como a mitologia parece insignificante perto mundo real, da vida real, como delírios doutra época agora submersos e superados pela valorização do homem em suas ocupações costumeiras, o que é corroborado pela própria história de Ícaro, que tentou ir alto demais, longe demais da terra, e por isso fracassou. O sol que derreteu suas asas já encontra-se no horizonte, como o crepúsculo do paganismo: o mundo não gira em torno de mitos, continua a seguir seu caminho, deixando-os para trás. Porém, como já era de costume na Idade Média, os motivos mitológicos ganham outra leitura que não a pagã, o que pode ser visto pela vestimenta atualizada dos trabalhadores; adquirem, então, uma moral alegórica, podendo ser vista como uma repreensão às ambições descomedidas, assim como pode representar a teimosia ou desobediência, relutância em aceitar condições inexoráveis e ignorar os riscos de conseqüências. Tendo em conta a perspectiva usada por Bruegel e a tendência renascentista de retratar a visão pessoal de alguém, pode-se presumir, ainda que forçosamente, que esse alguém seja o próprio Dédalo, já que não se encontra em lugar algum da cena, a olhar o filho cair, impotente. É, então, o pai desolado com a arrogância do filho, que paga com sua própria vida o preço da desconsideração.
Muitas vezes Ícaro é associado à condição do poeta, a suas ambições de glória literária que o distanciam das exigências da realidade e o levam a empreender vôos que o expõem a graves riscos. O quadro de Bruegel mostra a distância incomensurável entre as humildes tarefas do dia-a-dia do homem comum - que ara a terra, que cuida das ovelhas, que navega pelo mar – e as preocupações de criação literária próprias do poeta, do escritor, representados pelo vôo de Ícaro. Ao mesmo tempo, denota a indiferença do resto do mundo ao sofrimento individual, que por maior que seja não tem o poder de comover a todos – as mortes se dão, ainda que seja primavera. O arador continua a arar, o galeão tem um destino e segue calmamente seu caminho. O pastor, mesmo tendo estado a observar o céu, também não se abala. Terá ele ouvido os gritos? Bruegel geralmente mostra a humanidade como sendo algo patética e grotesca.
Outra leitura, considerando o estilo de Bruegel no geral dar um extremo valor aos detalhes, mostrando como eventos aparentemente sem relação contribuem para a harmonia e construção do todo, considera Ícaro como o elemento-chave no meio de tantas distrações ; para usar um dito popular, “a beleza está nos detalhes”, sendo “beleza” uma variável facilmente substituída por Deus ou qualquer outro termo que designe uma importância maior. É muito fácil de se obter um panorama geral com uma olhadela, mas só um estudo um pouco mais aprofundado pode revelar coisas essenciais que são ignoradas pela maioria.
PAISAGEM COM A QUEDA DE ÍCARO - Hans Bol, 1567.
Aquarela sobre papel. Museu Mayer van der Berg, Antuérpia.
Logo de primeira vemos muitas semelhanças com o quadro de Bruegel: o lavrador com o arado e cavalo, o pescador, o pastor, as ilhotas e a baía. A paisagem perde-se no azul infinito, enquanto que em primeiro plano, estão todos – até os cachorros – olhando para as duas figuras aladas que pairam acima. Curiosamente, há mais duas figuras aladas, só que em terra, numa ilha com árvores, rochedos e um castelo. Essas são as principais diferenças entre as duas representações: todos notam e se interessam pelo fato de que há dois homens no céu, uma cena que devia parecer muito mais inusitada para um homem quinhentista do que nos tempos de hoje. É um interesse não só pelo fantástico, característica muito forte na arte flamenga primitiva e renascentista, mas que também combina-se com a expectativa e o medo de que algo aconteça e a liberdade alada não dure muito tempo para eles, o que de fato acontece com Ícaro, que já pode ser visto mais longe que o pai, vestindo amarelo e voando no sentido contrário, em direção à fonte de luz. Uma nuvem negra paira em cima de sua cabeça, a qual ele irá ultrapassar sem pensar duas vezes e que provavelmente esconde atrás de si a luz e o calor que será a ruína de Ícaro. As duas outras duas figuras portando asa, na ilha, podem estar ali para mostrar que os dois saíram da torre daquele castelo, que o vôo mal começara, e Ícaro já tomava a dianteira ignorando os conselhos do pai. Eles têm as mesmas cores das vestes de Ícaro e Dédalo, então, portanto, poderiam ser uma pequena recapitulação do treino de vôo; ou dois gozadores, imitando os movimentos como se estivessem no céu, mas sem ousar deixar a segurança da terra, porque sabem não serem pássaros e que voar não é e não deve ser natural do ser humano. Contentam-se em meramente reproduzir, ao invés de arriscar-se a objetivos impossíveis. Eles também indicam que o que aparece no céu não são anjos ou figuras divinas, mas homens comuns com artifícios.
Os cavalos, que demonstram estar perturbados, talvez pressintam que aquela empreitada termina em tragédia. O homem sentado no canto inferior direito, segurando uma vara de madeira, parece comentar também que aquilo não era certo, criticando a ousadia dos dois fugitivos e tecendo as possíveis consequências, e não sai de seu conforto nem para espiar melhor o que vai acontecer. O resto das personagens todas (o outro homem sentado, que ouve os comentários sem dar muita atenção, o homem em pé ao lado do cachorro, os próprios cachorros, o lavrador, os dois pescadores e o pastor) param o que estavam fazendo para contemplar. A perspectiva é mais acurada matematicamente, mostrando os camponeses num terreno mais baixo e que ressalta a altura em que voam Dédalo e Ícaro, num contraste muito forte entre o primeiro plano, com cores orgânicas e ligadas à terra, com o azul que representa o sítio a ser conquistado com o vôo, irreal e quase cósmico. Mas tanto Bol quando Bruegel, tendo gosto por paisagens, incluem uma dimensão ampla para o seu cenário, tanto querendo mostrar que a ambição humana é pequena demais, comparada a tudo o que pode ocorrer na vastidão do caminho, mas a diferença na paleta de Bol, muito mais fria, destaca ainda mais a dificuldade das conquistas.
Indo um pouco mais longe, abrindo a interpretação numa crítica à contemporaneidade dos dois, a saga de Ícaro pode ser vista como o homem renascentista, ou humanista, como eles mesmos preferiam se denominar, na eterna e infrutífera busca de aproximação com o divino por meio da análise do mundo que Ele criou, ultrapassando sem pestanejar todas as nuvens negras que se interpõem. Ou seja - só uma visão destacada da realidade terrena, metaforicamente colocada como uma vista dos céus, pode levar a conclusões mais acertadas, mas, como não é essa a natureza humana, os tropeços e riscos estragar os próprios meios de estudo e cair no mar e são muito grandes; e nem se precisa de um calor muito intenso para derreter e inutilizar todo o esforço feito. A luz, nesse sentido, também tem um papel extremamente importante: se no Gótico ela era a própria manifestação do divino, no Renascimento representa o conhecimento a ser desvendado. O problema é que, quando não se está acostumado com muita luz, o brilho inicial é tão cegante quanto a escuridão e leva ao mesmo tipo de desnorteamento, mas talvez agora causado não pela ignorância, e sim pela arrogância e má interpretação dos novos conceitos.
Ícaro representa l’uomo singolare, aquele que mantém controle de seu destino até que sua ambição fique à frente, mais como um ato humano do que um castigo divino. É um símbolo do livre arbítrio renascentista, que ainda não sabe muito bem que caminho seguir após tanto tempo sob o cativeiro da Providência divina do medievo. Características humanas como curiosidade ao que não diz respeito e a mania de se vangloriar, que são geralmente causas primeiras de uma tragédia, são inconcebíveis sem a liberdade de escolha e a inevitabilidade da morte. Mas, apesar de Ícaro encarnar muitas das falibilidades humanas, no Renascimento ele se mantém como um modelo positivo de determinação.
20080829
As Quedas de Ícaro - análise de quatro pinturas do tema sob contexto Renascentista e Barroco, parte I
Introdução - da Idade Média ao Barroco.
Como toda passagem histórica, é problemático estabelecer o ponto exato em que termina a Idade Média e surge o Renascimento; a transição não é abrupta e universal, mas sim rizomática, fragmentada e totalmente subordinada ao momentum político, econômico e social de uma determinada região da Europa. É possível, no entanto, identificar aspectos precursores que, digeridos e recombinados, constituem o que chamamos Renascimento nas artes visuais; aspectos estes que compreendem novas descobertas científicas, mudanças estruturais nas sociedades, renovação da espiritualidade e das demandas culturais. Pode-se dizer que o período entre o ano de 1300 e 1600 é inteiro marcado por essas inovações, que foram impulsos racionais influentes na nossa mentalidade até os dias de hoje. Portanto, para entender esta transição, é preciso fazer um pequeno resgate dos valores medievais, posto que o Renascimento é, automaticamente, uma negação dos mesmos.
No século IX, surgiu uma ordem filosófica chamada Escolástica, que visava manter uma unidade no Cristianismo ao clarificá-lo. Abandonando os traços clássicos e helenísticos que tivera a filosofia ocidental até então, a Escolástica lançou-se no estudo das artes e ciências, mas sempre em função da religiosidade, tentando estabelecer um ponto em comum entre fé e razão. Para isso, voltaram seus estudos à metodologia científica árabe, povo que exercia uma grande influência na Península Ibérica, devido à ocupação moura dos séculos VIII ao XV. Os ensinamentos do Islam abriram espaço à investigação da Matemática, que acabou se desdobrando na Física e na Astronomia. A arte islâmica não admite figuração; suas bases são a geometria, porque esta é a base do Universo; as formas orgânicas são efêmeras, e, por isso, meramente transitórias, lembranças da carne.
Uma questão que entrou em debate durante esse período foi, justamente, a herança bizantina iconoclasta, resultante de uma interpretação literal dos Dez Mandamentos; mesmo legalizadas, alguns dos escolásticos ainda achavam as imagens perigosas, podendo desvirtuar a fé do povo. Mas, devido à restrição cultural deste, perceberam que as ilustrações podiam auxiliá-lo a compreender melhor as passagens da Bíblia, inspirar temor e compaixão, como imagens de um mundo sobrenatural que nos escapa aos sentidos humanos. Depois de muitas discussões, decidiu-se que o valor didático dessas imagens era inegável, e, ao invés de proibir, fez-se necessário instruir a população da diferença entre essas meras invocações e as entidades imateriais. (De fato, até o século XII era proibido mostrar o Cristo na Paixão: as representações tinham de ser serenas, controladas, com uma calma que confortasse os espíritos angustiados. Com a nova empresa escolástica de instrução visual, o Cristo crucificado deixou de ter uma conotação humilhante para se tornar um lembrete de que Ele sofreu por nós, e que a expiação dos pecados se dá pela dor.)
Então, em princípio, o objetivo das representações visuais no medievo não visa uma cópia fiel da realidade, mas sim um lembrete de como a humanidade é imperfeita ante ao divino. As figuras adquirem valores alegóricos, traduzindo conceitos, e o uso constante do fundo dourado indica uma abrangência, ou seja, aquela cena poderia ocorrer em qualquer parte do planeta, mostrando a onipresença divina e a inexorável mácula do pecado que carregam todos os homens, não importa quem são e de onde vêm. Quanto ao esquema de proporções, inicialmente utilizava-se o cânone bizantino dos três círculos (um circunscrevendo a face, o outro os limites da cabeça, e o último, a auréola); mais tarde, de acordo com o pensamento de que a face é o espelho da alma, estabeleceu-se o comprimento do corpo humano em nove medidas de face; por fim, já no Final do Gótico, quaisquer cânones parecem ter entrado em declínio em favor do subjetivismo, o que poderia ser interpretado como um abandono total da racionalidade.
E é justamente neste ponto em que as coisas divergem: quando se abolem as regras estilísticas, abre o espaço para novas e ousadas soluções artísticas que provêm tanto de um artista isolado quanto de um coletivo específico. Some-se a isso descobertas científicas (que sempre mudam nossa visão de mundo) e uma tendência original começa a despontar. No caso do pré-Renascentismo, como cabe melhor chamar essa transição incerta, foram descobertas matemáticas que aos poucos deram a base técnica para que se passasse do estilo planar e ornamental medievo ao realismo vivo tão característico do quinhentos: o Livro de Óptica (Kitab al-Manazir), do árabe Ibn Al-Haytham, mais conhecido ocidentalmente como Alhazen, que consiste num tratado sobre Óptica, Física, Matemática, Psicologia e Anatomia, deu origem à uma nova percepção, sendo resgatado e absorvido pelos renascentistas, assim como bebiam nas fontes de Euclides, Ptolomeu, Vitrúvio e outros textos gregos que começaram a se espalhar pela Itália depois da queda de Constantinopla. O interesse nas medidas objetivas fora avivado novamente, ora comprovando os ensinamentos clássicos, ora complementando, ora utilizando-os como base para outras teorias. O homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, é um exemplo claro da retomada de medidas clássicas nos estudos – o homem com os braços abertos inscreve-se num quadrado, e com os braços e pernas estendidos, num formato meio estelar, inscreve-se num círculo descrito em torno do umbigo. Os renascentistas, porém, foram muito mais longe, corrigindo as proporções gregas, e acrescentando um espírito subjetivista ainda maior; as imagens não era mais simples invocações, independentes do mundo real, mas sim cenas vistas pelos olhos de alguém, com todas as deformações que o olho humano proporciona.
Isto é natural do pensamento humanista e antropocêntrico que ganha cada vez mais lugar na filosofia, culminando até numa reforma religiosa protestante, que contesta os valores incrustados como verdade absoluta até então. Porém, vale a pena notar que a persuasão racional e científica dos “humanistas” da Renascença aplica-se mais à Itália, sendo diferente a evolução artística no Norte, que permaneceram mais isolados durante a primeira fase renascentista. De fato, a pintura flamenga começou a se desenvolver somente no Alto Gótico, com Jan Van Eyck e Hans Holbein, por exemplo, e manteve um pouco dessas características através do Renascimento. As descobertas matemáticas não passaram em branco, mas eram secundárias considerando que cada pequena comunidade dentro daquela região tinha seu próprio estilo, e os artistas tinham de se adequar ao gosto de seus clientes, que geralmente representavam uma ordem religiosa cheia de cânones e regras. Além disso, o povo flamengo não concebia uma distância histórica desde o Gótico, diferentemente dos italianos, que não se identificavam em nada com aquele tipo de mentalidade "bárbara". (A própria palavra Gótico vem de uma denominação pejorativa renascentista relativa aos Godos, bárbaros que se estabeleceram na Germânia, porque pensava-se que o estilo tinha sua origem naquela região. Só mais tarde, no séc. XIX, quando começaram os estudos metodológicos de História da Arte é que se descobriu que o Gótico havia começado na França, mais especificamente por causa da reforma que o abade Suger fizera em St-Denis baseada em conceitos neoplatônicos.)
Os os artistas espanhóis, que tiveram muita influência flamenga por causa da preferência de Filipe I, O Belo, por esse tipo de arte, eles se inspiravam em (xilo)gravuras medievais, vitrais, e antigos mestres locais. Com a reforma protestante, os conflitos religiosos se intensificaram e os países baixos mantiveram a diversidade de estilos que sempre os diferiram dos movimentos correntes pela Europa. Sendo Roma o centro de toda a doutrina católica, os conceitos demoravam a chegar e eram deturpados pelo caminho.
A partir de 1600, entrou em vigência o estilo Barroco (comumente aceito como “pérola irregular”), que era patrocinado pela Igreja para arrebanhar de volta os fiéis perdidos com o protestantismo, sendo acompanhado de duras políticas como a Inquisição (baseada no Malleus Maleficarum, um tratado sobre bruxaria que coloca a mulher como o ser mais vulnerável e sujeito à dominação de Lúcifer). Porém, diferentemente da mentalidade medieval, o Barroco assumia um caráter mais racional, sendo um exemplo exímio de argumentação lógica, mas ainda totalmente presa à fé, os Sermões do Padre Vieira. O uso de motivos mitológicos é tão corrente quanto no Renascimento, porém eles têm um valor fragmentário muito maior, estando totalmente descontextualizados e servem, de certa maneira, de pedras construtivas dentre tantas outras para servirem a um propósito de Deus. Primando a unidade íntegra do todo, mas não no sentido estético renascentista resgatado do conceito de Uno de Plotino, que afirmava estar a beleza na relação entre as partes e no conjunto, e sim para demonstrar o quão intrincado e complexo é o espírito humano, em que as características se fundem, se influenciam e contribuem igualmente para o todo – só uma alma verdadeiramente pura e com todas as suas partes em harmonia e consonância podia ter um lugar garantido no céu. Por esse motivo, a arte barroca apresenta uma unidade visceral entre suas partes, sendo também dramática, opressora e visivelmente chocante com o propósito de despertar as pessoas de seus devaneios egocêntricos e mundanos para as coisas divinas. É, também, teatral, mostrando o grande palco de encenações que é a vida. Se o Renascimento pode ser definido com a perfeição eqüidistante de um círculo, o Barroco encontra seu ritmo na elipse, nem sempre linear, constante, mas que por fim volta ao princípio, fechando um padrão mais difícil de ser reconhecido, mas não menos determinante e influente. Isso explica também o fato da arte barroca se manifestar de maneiras tão diferentes, todas possuindo um dinamismo emotivo tão intenso que comove mesmo aqueles que se acham intocáveis.