20080109

dreams that money can buy

aniversário com família é sempre loser. foi mais ainda porque os garçons do restaurante em que almoçamos vieram todos cantar parabéns com as luzes apagadas e um petit gateau, que dei ao meu irmão de bom grado. mas verdade seja dita: loser ou não, só queria que me deixassem em paz. felizmente o número de ligações diminui a cada ano que passa.
bom, depois do almoço fomos eu, ele e mamã à fnac, como é de costume. eu estava entre três dvds: diário de uma garota perdida, com a louise brooks, que nunca vi pra comprar nem alugar em lugar algum da terra; eu, você e todos nós, a que não assisti mas recebi recomendações extremamente positivas, e gosto às vezes de pegar coisas que não conheço; e... o volume 6 da coleção cinema avant-garde, de que já comprei o 5 (de oito).
por eliminatória, fiquei com o último.
essa coleção reúne longas e curtas desde os primóridos do cinema, no fim do séc. XIX, e atravessa o séc. XX com experimentalismos e vanguardas respectivos de cada época. o volume 5 me havia surpreendido; comprei sem conhecer nada do que ali estava, mas já o primeiro curta me prendeu a atenção - chama-se annabelle dances and dances, de 1894, um dos primeiros registros do cinema e o primeiro de dança. annabelle usa um vestido que possui prolongamentos na barra que se prendem a varinhas em suas mãos, e, conforme os movimentos treinados à exaustão, o tecido pode se transformar facilmente em asas de borboleta, movimentos espiralados e outros padrões. a má resolução e os efeitos primários de colorização só adicionam uma beleza etérea às cenas, sem contar a música de fundo que tem qualquer coisa de perturbadora. (obs. o link que deixei mostra só um pequenino trecho e com outra música.) mais pra frente, temos experiências com luz, filmes rodados ao contrário, efeitos de levitação e até um curta expressionista da queda da casa de usher, de edgar allan poe.
pensando nisso tudo, não era de se surpreender que também fosse gostar do volume 6. confesso, ainda não o vi inteiro - mas só o primeiro filme, dreams that money can buy, de 1947, já vale a pena sentar cá e escrever. o cigarro caiu de minha boca logo nos letreiros: direção de hans richter (um dada-surrealista), com a colaboração de max ernst. a música tem também a colaboração de john cage, um dos grandes nomes da música erudita de vanguarda. só para mostrar como o cara é importante, pensem que mesmo num curso de artes visuais aprendemos sobre ele.
max ernst? nem sabia que ele havia feito um filme! a atenção foi ainda mais aguçada. como já disse e vocês perceberam, o max tornou-se um pai para mim. não o único, mas o mais presente e influente nestes últimos períodos de minha vida. segue o filme.
sépia. em minha modesta opinião, é preferível a preto-e-branco. os tons de castanho têm algo fascinante. começam os devaneios de um artista, que de repente entra em contato consigo mesmo encarando seus olhos fixamente. sente-se pronto para então ajudar os outros a darem vazão ao que corre nas profundezas de cada um, claro, ganhar um pouco de dinheiro com isso. escolhe ser negociante de sonhos. o monólogo não é em absoluto complexo e impenetrável, muito pelo contrário. é enxuto e tão explícito que chega a provocar um pouco a nossa capacidade de compreensão. mas, como ficaria provado até o fim do longa, isso não é em nada um defeito.
até podia-se confundir com um filme noir: a voz da consciência em off, e o que parece ser um detetive em seu escritório. um pouco mais pra frente, no entanto, a coisa fica um pouco diferente quando vemos que só há a voz da consciência; as personagens encontram-se e têm diálogos em suas próprias cabeças. e o negociante de sonhos exerce sua profissão, olhando fundo nos olhos de cada cliente para perceber suas ânsias. os primeiros clientes são Mr e Mrs A. ela reclama que o marido não possui nem vícios nem virtudes. ela quer que seus horizontes sejam ampliados. e em então entra Mr A. nalguns momentos vemos flashes de obras de max como o romance-colagem uma semana de bondade, e o quadro o vestimento da noiva, como rápidas olhadas no que se passa na mente do cliente.
começam os sonhos - em cores. o primeiro, desire, é uma história de amor de uma calma furiosa, concebida por max ernst. uma mulher deitada numa cama vermelha sopra uma bola dourada, deixando-a chegar perto da boca para depois soprá-la mais pra cima, até que é engolida. a moça sorri e adormece. they talked about love and pleasure... a cenas se sobrepõem até que---- max em pessoa faz uma aparição negra e misteriosa como le president, tão sorrateira como onipresente, parecendo exercer um controle calado sobre tudo. o filme continua delicioso, com cenas surrealistas das mais variadas, e os diálogos em off. em seguida, temos girl with the prefabricated heart, um musical bizarro usando manequins, criticando os romances hollywoodianos e, ao mesmo tempo, glorificando e caçoando o feminismo. delírio de fernand léger, pintor francês. (pena que o trecho do link não mostra a manequim na bicicleta, que é a parte medonha.) e então chega man ray com ruth roses and revolvers, fazendo uma platéia imitar o que ia acontecendo no filme a que assistiam para mostrar a susceptibilidade do público. faz uma pequena aparição numa foto. e depois marcel duchamp com discs, que possui uma versão cinematográfica de seu nu descendo a escada, além de incômodos discos girantes que hipnotizam.



discs, de duchamp, com música de john cage.

alexander calder fica responsável por duas sequências: ballet, e circus. o último foi inteiro montado com objetos, que possuem uma estrutura que permite movimento, sem contudo serem mecanizados. adorável para pessoas como eu, que acham que objetos têm mais sentimentos que muitas pessoas por aí. este pequeno filme de 1961 com o próprio calder, le cirque, mostra bem o que quero dizer. narcissus, do próprio hans richter, fecha o filme com o sonho mais longo estrelando o próprio negociante de sonhos, que se torna o homem azul durante uma partida de poker. mostra o isolamento de que sofrem os artistas e, no contexto, a humanidade após a guerra. como as raízes foram cortadas, o futuro pode ser ao mesmo tempo excitante e amendrontador.
as falas não são as mais poéticas do mundo, mas para quê, com todas as imagens e sequências fascinantes que nos deixaram os vanguardistas? é escancaradamente experimental, mas quem se importa? tenho mais é de agradecer ao max por me ter encaminhado a essa pérola perdida no tempo. melhor presente de todos, max, obrigada.


(sim, é isso, eu não tenho dúvidas de que ele é meu mentor do além e enviou-me o filme de propósito.)