20090623

Grande Relatório de Visita ao Museu de Arte

muita vez é uma certa ingenuidade inerente que me guia nos mais variados assuntos. não sei de onde vem, para onde vai e qual seria o seu propósito em minha vida, mas ao passar pelo prédio decadente ao lado do museu a que nos dirigíamos já despontou- como pode, um prédio desses, plena avenida (mais) importante, abandonado...? abandonado, pois sim, o que se passa em suas entranhas é da mais alta obscuridade, só não se transparece tão óbvio, e é por isso que persiste, sem que nenhum dos milhões de transeuntes diários tirem cinco minutos de sua aterafada e preciosa vida na sociedade paulistana para dedicar uma centelha de reflexão sobre qual a função daquela estrutura umedecida e aparentemente estática ao lado de um dos cartões-postais da Cidade Grande - não excluindo hipocritamente a minha própria pessoa, que ao invés de lhe creditar uma razão de ser no meio de tantas outras construções de importância convencionada, prefere acreditar na poética ruína de tempos outros ainda subsistindo, tal maldição inquestionável de vilarejo brejeiro.
afinal de contas, morei durante dois anos pelos arredores e nem ao Museu de Arte de São Paulo dignava-me a ir pelas terças-feiras, quando é de graça. se moro ao lado está à minha serventia, de que serve o agora se existe o depois...?, mas o dia de hoje era diferente, já não tenho ao meu alcance quando por meu capricho apetecer o passeio artístico, então subitamente esqueço o prédio descaído para frustrar mais uma vez minha ingenuidade logo à frente: é claro que há um monte de gente, uma turba, como aprendi recentemente, um murundum, como diz a avó, aproveitando que às terças-feiras não se paga meia entrada ou inteira, coisa que já saberia por instinto se tivesse o costume de frequentar a vizinhança na qual me inseri nos últimos dois anos.
a motivação motriz para tal visita foi um relatório de História da Arte (Kunsthistorie, como mais me apraz) que tenho de entregar nesta quinta-feira agora, sobre a exposição que abrange o período de 1860-1960. Realismo francês, bom dentro de sua proposta, vários Blübeni des Finefoi, 1879, com detalhes composicionais, pinceladas e paletas interessantes. mais valia era fazer recortes e reassemblar todos os pontos de interesse, aquela mão, aquele fundo, aquela bunda, aquele olhar, aquela cor, mete-se tudo numa tigela com farinha e ovos e fermento e pimenta à gosto e deita-se ao forno pré-aquecido durante vinte minutos. o Frankenstein estético resultante seria de maior primor do que toda a coleção pop(verty) sessentista que confia mais na pretensão do público do que numa coerência compositiva. é Arte, querido, não é suposto entender, não é suposto achar belo, sabe, o belo é passado, água corrida, mas que enfadonho atraso mental essa sua mania clássica, já vi que não se abre nem um bocadinho para...; diz o público saído do subsolo embriagado de Vik Muniz. um grande chacoalhar de ombros blasé a todos os realismos projetados, e para não dizer que era tudo ruim invade-me a ânsia, novamente, de retalhar algumas composições em metades, terços, quartos, enviar ao artista de origem com um bilhetinho num alfinete, tava indo tão bem até aqui, tivesse parado e poderia ser alguma coisa, POR QUÊ, SENHOR?, EXPLIQUE, A SÉRIO QUE NÃO COMPREENDO, QUE QUE É ESSA FUMAÇA, DE ONDE RAIO SURGIU ESSE FOGO...?!
as modernices tupinas como Anita e DiCavalcanti e Portinari eles - eles, curadores e espectadores -fingem nunca terem estado lá, oh, toda vez que olho para isto é como se fosse a primeira. e por mim, na minha modesta opinião, poderiam nunca ter estado que minha disgestão fruitiva seria mais harmônica. uma paisagem ou outra me agrada, sou bucólica incurável, destaque para as realistas que por sua segurança não podem dar muito errado. em especial me comove uma paisagem de inverno que nem possui tanto vigor assim, mas vai entender esses processos mentais que convencionam o gosto... e um deles me faz ter uma panca por quadros escuros, com escassa e indireta fonte de luz.
uma quase abstração vegetativa já desprezei, MAX ERNST FAZ MELHOR, para três segundos depois encontrá-lo numa geometria grattajada três molduras adiante (inclusive vale frisar que algumas das molduras da ala Realista deviam separar-se de suas obras e ter uma ala em especial para Barrocada). sem dúvida não é o seu melhor, ainda prefiro o cânion avermelhado e orgânico em decalcomania do acervo permanente, apesar das dimensões diminutas.
indiscutivelmente destestável é Léger, que tem a pachorra de aprender luz e sombra diante do público inocente.
a uma dada altura vi um colega de classe ao fundo de uma representação minuciosa de uma banda em concerto, galantemente resumido em sua protuberância suprafrontal de modo a dissipar quaisquer dúvidas sobre a identidade da figura. é ele e prontes, não me venham com discussões. e como ruindade é questão de ponto de vista, decidiu-se que a excursão continuaria no subsolo para que as críticas elevadoras de ânimos caíssem sobre Vik Muniz, o homem da geleia com pasta de amendoim. disse sabiamente Diogo Mainardi há duas semanas: Neil Buchanam faz obras gigantes no chão com um esfregão e água e lhe dão uma merda de um programa infantil no Disney Channel, Vik Muniz copia a Mona Lisa em geleia e lhe dão reconhecimento internacional; alguma coisa anda seriamente errada no mundo da arte. não foram exatamente essas as suas palavras, confesso, mas o sentido é praticamente o mesmo. seus trabalhos são verdadeiramente ruins porque até para chacotas não dão material decente. a minha teoria é que parte da excitação do público é devida às cores (e sua sequência no espaço expositivo) nas paredes em que se penduram as "obras". quando vislumbrei no andar debaixo uma Santa Ceia davinciana como quebra-cabeças (POR FAVOR não digam ou sequer pensem O Código DaVinci) fiquei tão atordoada que a primeira reação foi sentar no gélido banco e tentar direcionar a mente para gazelas saltitantes nos bosques verdejantes atrás de berryshrubberies e um regato para matar a sede.
mais uma vez a minha ingenuidade me faz vítima, porque uma parte sincera do meu ser consciente até acreditava que alguma coisa válida havia para se ver no subsolo - o que se provou terrivelmente equivocado quando vi uma foto de Alice Liddell tirada por Lewis Carroll, que por acaso estudava na noite anterior, The Beggar Maid, baseada no poema de Lord Tennyson, coisa fina naturalista - materializada em brinquedos vagabundos. PÂNICO. talvez não estivesse tão errada na minha relutância aparentemente sem motivos a visitas mais regulares e solitárias ao Museu. afinal, sem companhia para desenvolver as más impressões o que fica é um sentimento de desperdício de tempo (e certa rabugentice), o que bradei bem quando passava pelo público que ouvia apaixonadamente o monitor discursar - eis aí vinte minutos de minha existência que jamais se recuperarão.